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COMO FOI A ATUAÇÃO INDÍGENA NA CISPLATINA? 3f6j3g

Muitas vezes ignorada, o trabalho dos povos originários marcou capítulo da história do Brasil e de Portugal no rio da Prata.
 EXISTIU UMA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL?

LI: “Los últimos Charrúas”, década de 1830. 52444o

Como foi a atuação indígena na Cisplatina?
Muitas vezes ignorada, o trabalho dos povos originários marcou capítulo da história do Brasil e de Portugal no rio da Prata.

por Fábio Ferreira

A“Estes Índios devem ser bem tratados pelas vantagens que delles poderemos tirar”. A afirmação foi feita pelo general Carlos Frederico Lecor em mensagem ao também militar Xavier Curado, nos tempos em que as forças de D. João VI ocupavam o território onde hoje é a República Oriental do Uruguai. Antes da análise da frase, é importante lembrar como as forças do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves foram para a área que atualmente é o Uruguai, bem como quem era o general Lecor.

Resumidamente, por causa do processo de independência da América Espanhola, a região sofreu com o antagonismo de diversas forças políticas, resultando em guerras, mortes e retração econômica. Um dos muitos grupos políticos que existiram na Bacia do Prata foi o liderado por José Artigas, que, atualmente, é o principal herói nacional uruguaio. Esse personagem tinha a base da pirâmide social como um importante apoio, inclusive o de várias lideranças indígenas.

Frente à incapacidade de derrotar Artigas, seus rivais articularam com a corte portuguesa estabelecida no Rio de Janeiro a invasão ao futuro Uruguai. Para liderar a missão, o escolhido foi o já mencionado general Lecor, que, a partir de 1817, instalou-se em Montevidéu como o governador português do Prata. Em 1820, em razão da aliança entre os portugueses e os inimigos de Artigas, o líder “uruguaio” foi derrotado. Em 1821, em um congresso manipulado, o grupo de Lecor conseguiu unir o “Uruguai” ao Reino Unido português, sob o nome de Estado Cisplatino Oriental. E, nesse contexto, como ficou a população indígena?

Parte dos nativos se refugiaram em Entre Rios (hoje, Argentina), porém, o chefe político local, Ramirez, foi impiedoso com eles. Vários foram exterminados por apoiarem Artigas. Outros, como os chefiados pelo comandante Francisco Siti, foram obrigados a lutar por Ramirez em uma das tantas guerras em que o líder de Entre Rios esteve envolvido.

No entanto, anteriormente, quando Siti acordara com Ramirez o asilo, o combinado fora que o indígena e seus homens não fossem recrutados para conflitos militares. Porém, Ramirez não cumpriu com sua palavra. Frente à negativa de guerrearem, os indígenas aram a ser perseguidos e acabaram por negociar sua fuga para o “Uruguai”. Feita a travessia, parte dos homens de Siti foi dispersa em várias propriedades rurais como peões, e a outra fração, itida em regimento militar luso-guarani.

Vale lembrar que receber esses indivíduos não foi um ato humanitário dos súditos de D. João. Era uma forma de obter-se as “vantagens” mencionadas na frase de Lecor utilizada para iniciar este artigo. Entender o contexto da gestão do general também contribui para o melhor entendimento de sua estratégia: os portugueses sentiam-se ameaçados por possíveis ataques provenientes, principalmente, de Entre Rios e de Buenos Aires. Portanto, incrementar o regimento luso-guarani era conveniente. Além disso, as forças militares do Reino Unido português no Prata encontravam-se desfalcadas por deserções e desgastadas pelos muitos anos do seu recrutamento. Igualmente, com a área exaurida por anos de guerras, com homens arregimentados para combates e com várias vidas ceifadas, as propriedades rurais precisavam de braços para o trabalho no campo.

Outro líder autóctone que tratou com os portugueses foi o minuano Domingo Manduré, em razão do seu desentendimento com Artigas e Ramirez. Por volta de 1820-1821, Manduré possuía, nas cercanias do rio Uruguai, uma estância; povoado com seu nome, e era, pelas mãos de Lecor, tenente-coronel com seu respectivo soldo. Também próximo à via fluvial, havia lanceiros guaranis com mais de 500 homens, sendo que à exceção do major e do coronel, todos os oficiais eram indígenas. Mais uma vez, a aliança política não foi fruto do altruísmo de Lecor. Trazia-se para o lado da Coroa portuguesa um segmento social que era uma importante base política de Artigas, bem como pode-se pensar no “network” que Manduré tinha na região do Prata.

Soma-se que a política de Lecor também fazia com que a população originária não fosse repreendida pelas lideranças militares portuguesas por serem artiguistas, ao menos no período posterior à derrota do líder oriental. Como exemplo, o viajante francês Saint-Hilaire viu um grupo de indígenas alcoolizados e que cantavam hinos exaltando Artigas. Segundo o viajante, o chefe militar português da localidade presenciou tal situação, porém não deu a mínima importância. Em sintonia com o ofício de Lecor que abre este artigo, o francês concluía, nas páginas de seu diário, que fazia parte da política lusa tratar bem os refugiados de Entre Rios.

Por fim, parte expressiva da historiografia sobre o período cisplatino explica que o êxito da ocupação portuguesa ocorreu pelas articulações políticas entre os súditos dos Bragança e as elites locais, bem como pelo atendimento das demandas do referido setor. Isso não é falso, mas a questão é mais complexa. É fundamental agregar à análise que o general português desenvolveu estratégias que foram além da força das armas para angariar o apoio de outros segmentos da sociedade, inclusive da população indígena.

Desse modo, o analisado no texto demonstra a participação de indígenas em um capítulo da história do Brasil que teve como palco a área que hoje é o Uruguai, mostrando a população originária atuando politicamente, tendo estatura política para negociar com os representantes de D. João e participando de forças militares que protegeram o Estado Cisplatino. Ainda assim, a seara da pesquisa é enorme e poucos são os ceifeiros. Há muito mais para se investigar sobre o trabalho indígena no Prata em campos como o da história política, econômica e militar.


Prof. Fábio Ferreira 6p4p5x

Professor associado da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor da tese de doutorado “O General Lecor, os Voluntarios Reais, e o conflitos pela Independência do Brasil na Cisplatina: 1822-1824” (PPGH/UFF, 2012).

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SAIBA MAIS:

DI MEGLIO, Gabriel. La participación popular en las revoluciones hispanoamericanas, 1808-1816. Un ensayo sobre sus rasgos y causas. Almanack. Guarulhos, n.05, p.97-122, 1º semestre de 2013.

FERREIRA, Fábio. A participação de índios e negros no exército português: o caso da Cisplatina. In: TAVARES, Célia; RIBAS, Rogério. (Org.). Hierarquias, raça e mobilidade social. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2010.

FRADKIN, Raúl O. La revolución en los pueblos del litoral rioplatense. Estudos Ibero-Americanos, PUCRS, v. 36, n. 2, p. 242-265, jul./dez. 2010

MOREIRA, Vânia Maria Losada; DANTAS, Mariana Albuquerque; COSTA, João Paulo Peixoto; MELO, Karina Moreira Ribeiro da Silva e; OLIVEIRA, Tatiana Gonçalves de. Povos indígenas, independência e muitas histórias. Curitiba: CRV, 2022.