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ÚTEIS A SI E À COROA x3q6b

indígenas pertencentes à vila de Vinhais no Maranhão, da idade de sete anos em diante, deviam estar prontos para o trabalho naquela vila. – Maranhão
 EXISTIU UMA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL?

LI: Igreja de São João de Vinhais, São Luís, Maranhão 3f3pm

Úteis a si e à Coroa: indígenas pertencentes à vila de Vinhais no Maranhão, da idade de sete anos em diante, deviam estar prontos para o trabalho naquela vila.

por Francisco Alves de Sousa Neto

Durante a segunda metade do século XVIII na Capitania do Maranhão, a arregimentação de mão de obra indígena foi elemento indispensável na produção colonial, serviço púbico e defesa do território. Nesse período, a lei indigenista que regulamentava as relações entre istração colonial e os indígenas era o Diretório dos Índios (1757). Dentre outras coisas, essa lei determinou que a mão de obra indígena fosse remunerada e “tornou” o trabalho compulsório. A partir do Diretório dos Índios (1757), os indígenas deveriam ser “úteis a si e à coroa”, sendo rigorosamente proibidos o “ócio e a vadiagem”.

Nessa época, a capitania do Maranhão recebia diversos investimentos e os colonizadores eram atraídos pelos incentivos para atuar principalmente no setor de produção agrícola. Tal condição é constatada a partir de registros oficiais que indicam o aumento da demanda por mão de obra. Vale destacar que mesmo após a inserção de trabalhadores escravizados procedentes do continente africano feita pela Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão (1755-1777), a demanda por mão de obra indígena não diminuiu.

A vila de índios de Vinhais foi um local de arregimentação de mão de obra indígena bem próximo à sede da capitania do Maranhão, a cidade de São Luís. Atualmente, o local onde foi estabelecido seu “núcleo arruado” é um bairro da capital maranhense denominado Vinhais Velho, mas o território que foi da vila abrangia outros bairros e áreas da atual capital maranhense.

Em uma “agem de mostra” datada em 30 de agosto de 1772, o governador da capitania do Maranhão, Joaquim de Mello e Póvoas, determinou que “todos os índios e índias pertencentes à vila de Vinhais da idade de sete anos em diante” se apresentassem na vila para o trabalho. Na ordem, o governador reiterava que todos deveriam estar prontos às seis horas da manhã do domingo e que aquele que faltasse à inspeção “sendo índio será preso na Cadeia pelo tempo de um ano e índia pelo de seis meses na Cadeia desta cidade”. O que chama atenção nesse documento é a idade mínima dos “trabalhadores” ser bem menor do que os 13 anos estipulados pelo Diretório dos Índios (1757). A convocação de indígenas para o trabalho compulsório, a partir de uma idade diferente da que determinava o Diretório, seria uma ilegalidade ou abuso cometido pelo governador da Capitania do Maranhão?

O fato é que em diversas situações foi necessário adequar a legislação indigenista para atender condições particulares de um determinado local. A conjuntura da capitania do Maranhão naquele momento, de aumento da demanda por mão de obra, consolidação da burocratização e da istração colonial e crescimento de sua economia, resultou no aumento da exploração da mão de obra indígena.

Outro exemplo é um documento datado de 8 de maio de 1771, remetido pelo governador Joaquim de Mello e Póvoas ao reino. Na oportunidade, relatou as dificuldades em manter os exercícios dos regimentos formados por contingentes indígenas que, supostamente, deveriam atuar na defesa do território. Nessa carta o governador indica um desvio nessa função e as mais diversas atribuições desempenhadas por esses indígenas. Ele comenta sobre dois regimentos que seriam formados exclusivamente por indígenas, constatando que esses nunca se encontravam em suas funções, pois sempre estavam a remar canoas de “dizimeiros”, envolvidos na extração de drogas do sertão, trabalhando com marchantes, prestando conta dos Serviços Reais e dos moradores, a quem socorrem “suas culturas” e “conduzem dos seus efeitos para esta cidade”. O governador conclui dizendo que sem o apoio desses trabalhadores indígenas “nem as culturas nem as fábricas podem ter adiantamento”.

São inúmeros os exemplos de utilização de mão de obra indígena nas obras públicas como abertura e limpeza de estradas e praças. Contudo, outras funções bem específicas eram desempenhadas por esses trabalhadores, como quando a Secretaria de Governo, em 26 de fevereiro de 1772, solicitou ao governo Maranhão o envio de mais tartarugas do que o de costume para o reino. E, para tanto, advertia que a alocação de “índios inteligentes para esta pescaria” era imprescindível. Ou quando um navio carregado de ferramentas afundou em 1755, e, para tentar salvar parte da carga e retirar as peças de aço e ferro da embarcação, foram utilizados pela istração colonial “índios mergulhadores”. Por meio de alguns exemplos, nos deparamos com diversos indícios de uma sociedade dependente do trabalho indígena. Dessa forma, a mão de obra indígena era tão imprescindível para o desenvolvimento econômico local como para o próprio sistema colonial.

No caso dos trabalhadores indígenas da vila de Vinhais, além das demandas dos moradores e do Estado, na vila foi instalada uma fábrica de beneficiamento de arroz, e boa parte dos trabalhadores estavam envolvidos no descasque desse cereal para a exportação. Contudo, esse trabalho era muito desgastante e os diversos atrasos no pagamento dos trabalhadores da fábrica de Vinhais começou a gerar descontentamentos.

É de se imaginar que essa condição não foi aceita ivamente pelos trabalhadores indígenas da vila de Vinhais, que demonstravam ter consciência da exploração a que eram submetidos pela Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão. Tanto que, em 30 de julho de 1780, foi produzido um documento na câmara da vila, onde houve a solicitação dos trabalhadores indígenas para que não houvesse mais “soque (descasque) do Arroz cá nesta vila” e, por não “ar os esforços de tal serviço”, pediam a “Sua Majestade” de não obrigá-los a tal serviço.

A constante falta de pagamento pode ter motivado essa atitude, já que os indígenas não estavam recebendo sua remuneração e deveriam estar desacreditados no sistema no qual estavam inseridos. Cientes da importância de sua mão de obra para aquela sociedade, os trabalhadores indígenas desse núcleo de produção colonial ameaçaram o governo da capitania com o pior desfecho, o abandono e o consequente esvaziamento da vila.

A relevância da mão de obra indígena na sociedade colonial por muito tempo foi interpretada como secundária ou mesmo inexistente. Com a experiência de contexto local trazida por nós, é possível compreender melhor a atuação dos povos indígenas no mundo do trabalho dentro das discussões acerca da história do Brasil.


Prof. Francisco Alves de Sousa Neto 6q6o4t

É doutorando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Maranhão.

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SAIBA MAIS:

DORNELLES, Soraia Sales. Registros de Fundações, Ereções e Posses de Vilas: um olhar sobre as vilas de índios do Maranhão. Sæculum – Revista de História, v. 26, n. 44, p. 308-327, 2021.

SOUSA NETO, Francisco Alves. Novas experiências coloniais a partir das vereações do senado da câmara da vila de índios de vinhais: istração colonial, política indígena e indigenista na Capitania do Maranhão (1758-1800). Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em História e Conexões Atlânticas: culturas e poderes, Universidade Federal do Maranhão (PPGHIS-UFMA). São Luís, 2024.

SOUSA NETO, Francisco Alves. Rizicultura, trabalho e protagonismo indígena na Capitania do Maranhão. Aedos, Porto Alegre, v. 16, n.37, p. 298-315, jun.-set, 2024.