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LI: Ilex paraguariensis. KÖHLER, Franz Eugen. Köhler's Medizinal-Pflanzen. 1897 (Domínio público) 55165x |
“O chimarrão é indígena!
“A história de como os indígenas Kaingang e Guarani lutaram pela erva-mate”
por Isadora Talita Lunardi Diehl
Você já ouviu falar da Ilex paraguariensis? Apesar do nome difícil, as bebidas feitas a partir dela são muito consumidas hoje em dia: o chimarrão ou mate, o tererê e o chá-mate são alguns dos exemplos. O mate já era consumido pelas populações indígenas da América do Sul, especialmente os guaranis, quando os padres jesuítas chegaram na região do Paraguai, no século XVII, e tentaram proibir seu consumo. A proibição não vingou e o mate se tornou bastante popular também entre os não indígenas. No século XIX, já havia se tornado um hábito em várias regiões do Brasil, da Argentina, do Paraguai, do Uruguai e do Chile. Nesse período, os indígenas do Rio Grande do Sul eram importantes produtores, mas, quando as exportações do produto começaram a se tornar mais lucrativas, as terras indígenas onde havia ervais foram progressivamente sendo roubadas!
Em 1823, Miguel Guarací, que era o capitão dos guaranis da aldeia de São Nicolau do Rio Pardo, reclamou para as autoridades que algumas pessoas estavam infringindo o direito deles de colheita e cultura da erva-mate. Ele juntou documentos para provar que o antigo governador do Rio Grande tinha dado aos indígenas de São Nicolau o direito exclusivo de comercialização da erva-mate há mais de 50 anos, inclusive confiscando a produção dos não indígenas que tinham ousado desobedecer às ordens. Apesar dessas reclamações, os guaranis de São Nicolau não conseguiam mais manter seu direito de exclusividade.
Em 1835 a situação ficou ainda mais complicada. Naquela época estava ocorrendo uma terrível guerra civil no Rio Grande do Sul, chamada de Guerra dos Farrapos (1835-1845). Um fazendeiro, aproveitando que muitos guaranis do aldeamento de São Nicolau estavam em guerra, registrou os três principais campos onde os indígenas cultivavam erva-mate no seu nome. Assim, os ervais de Pereira, Araçá e da Cruz aram a fazer parte da sua propriedade. Quando a guerra acabou, os indígenas reclamaram muitas vezes para as autoridades sobre esse roubo, mas, como não tinham dinheiro para entrar na justiça, acabaram perdendo as terras. Para piorar, em 1859, houve reclamações de que os poucos ervais que restavam para indígenas de São Nicolau estavam sendo invadidos por estranhos que, ao não respeitarem o tempo da colheita de março a junho, depredavam os ervais, causando imensos prejuízos aos indígenas.
Os kaingangs que viviam no planalto do Rio Grande do Sul também produziam erva mate. Por vários anos, os diretores do aldeamento de Nonoai elogiaram a dedicação dos trabalhadores indígenas nessa atividade e informaram que era com os lucros da venda desse produto que eles conseguiam comprar seus agasalhos. Em outro aldeamento, o de Guarita, liderado pelo “cacique” Fongue, também se produzia os insumos para o chimarrão. Quando esses indígenas foram viver em Nonoai (em 1853) retornaram algumas vezes para a aldeia de Guarita para fazer a colheita e processamento dos ervais. Em Nonoai, o outro aldeamento dos kaingangs, também havia trabalhadores que se dedicavam à extração da erva-mate.
Em 1857 foram descobertos os ervais de Vacas Brancas em uma área próxima à cidade de São Borja, na região oeste do estado. O terreno tinha pertencido às antigas missões, ou seja, era uma área que pertencera aos guaranis que tinham sido catequizados pelos padres jesuítas a partir do século XVII. Quando os desbravadores chegaram lá encontraram abundância de erva mate, mas foram atacados por uma “horda de bugres”. Bugres é uma forma pejorativa de se referir aos indígenas considerados “selvagens”. Para poder explorar os ervais de Vacas Brancas, as autoridades tiveram de contar com o apoio dos indígenas do aldeamento de Nonoai, que, em 1859, liderados pelo “cacique” Antônio Prudente, fizeram uma expedição até o local.
Conforme a erva-mate se tornava mais valorizada, menos os indígenas tinham o a ela. O que antes era um produto disponível e abundante, começou a se tornar cada vez mais cobiçado e ser comercializado pelos não indígenas. Por exemplo, em 1864, o grupo de kaingangs do “cacique” Chico Sem Nariz, que estava no norte do estado, em uma região chamada Campos de Cima da Serra, foi acusado de fazer erva mate sem autorização. Em 1872, o grupo do “cacique” Fongue se mudou para a região de Santo Ângelo, na zona oeste do Rio Grande do Sul, fundando o aldeamento de Inhacorá. Talvez a mudança tenha se dado porque aquela era uma região rica em erva-mate e os indígenas tinham interesse no produto. Em 1876, acusaram os indígenas de Inhacorá de estar fazendo uma revolta, na qual estariam destruindo ervais e plantações. Se soube depois que a notícia era falsa, que os kaingangs só estavam fazendo erva-mate em uns matos que eram próximos da propriedade de um fazendeiro, que não gostou que os indígenas estavam colhendo erva-mate e inventou a história da rebelião.
Portanto, observamos que as populações indígenas estiveram muito ligadas à produção da erva-mate e que ao longo do século XIX foram perdendo o o aos seus ervais ancestrais. Também vimos que a memória sobre as origens desta bebida e todo o trabalho que as populações nativas tiveram na sua produção foram por muito tempo esquecidos. Mas agora você já sabe que o mate e o chimarrão são indígenas!
Profa. Isadora Talita Lunardi Diehl 1w1c2o
É pós-doutoranda na Universidade Nacional de Brasília (UnB) e coordenadora do Grupo de Trabalho: Indígenas na História, da Associação Nacional de História - Seção Rio Grande do Sul (ANPUH-RS).
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SAIBA MAIS:
DIEHL, Isadora Talita Lunardi. Criando fronteiras: Guaranis e Kaingangs diante dos processos de invisibilização pelo Estado (Rio Grande do Sul, século XIX). Tese (Doutorado em História). Porto Alegre: UFRGS, 2023.
MELO, Karina Moreira Ribeiro da Silva e. O Aldeamento de São Nicolau do Rio Pardo: histórias vividas por índios guaranis (XVIII-XIX). Curitiba: CRV, 2021.
OLIVEIRA, Jorge Eremites de; ESSELIN, Paulo Marcos. Uma breve história (indígena) da erva-mate na região platina: da Província do Guairá ao antigo sul de Mato Grosso. Espaço Ameríndio, v. 9, n. 3, p. 278-278, 2015.
SARREAL, Julia. Yerba Mate: The drink that shaped a Nation. University of California Press, 2023. Este livro da Julia é resultado de um estudo que ela vem fazendo há anos sobre a erva-mate.
ZARTH, Paulo Afonso. Do arcaico ao moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX. Ijuí: Ed. Unijuí, 2002.