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Representação de “índio caboclo”, por Jean-Baptiste Debret (século XIX) 1a3p15 |
Trabalho indígena na Bahia do Período Imperial: Comumente considerada como um fenômeno mais característico do Período Colonial, a utilização do trabalho indígena esteve presente na província da Bahia do Período Imperial em diversos territórios e sob variadas formas.
por André de Almeida Rego
Não posso deixar de informar a V Exª que se me tem afirmado que tais índios têm as melhores disposições para serem catequizados, e alguns muito inclinados a ofícios, já estiveram subordinados ao de uma fazenda, do qual apenas recebiam um pouco de farinha diariamente, e só por isso se prestavam a todo o trabalho pesado e até a dormirem presos, até que pela manhã, os soltasse o dito fazendeiro; no entanto que excessos, vilezas e outras coisas indecorosas, que desgraçadamente tiveram lugar, os forçaram a buscar os matos, não sem grande pesar; depois de matarem os que os tinham ofendido, e tornarem-se perseguidores, até o ponto em que se acham de porem no maior apuro as vidas e propriedades dos moradores dos arredores daquela vila do Prado e de alguns das últimas roças desta vila (Ofício do juiz de direito interino de Caravelas, Benigno Tavares de Oliveira, endereçado ao presidente da província da Bahia- Vila de Alcobaça, 10 de março de 1848).
O trecho sinaliza diversas faces das relações estabelecidas entre nacionais e indígenas na região sul da Bahia no século XIX. Por meio dele e de outros testemunhos, verifica-se o processo de avanço sobre os territórios indígenas, assim como as estratégias de conquista desses rincões, que lançavam mão do genocídio, como ocorreu na chacina de 1845, em que pereceram cerca de 40 indígenas entre homens, mulheres e crianças. Juntamente a essas ações de guerra, atuavam as epidemias, colaborando para impor uma situação de crescente vulnerabilidade dos diversos povos originários no sul da Bahia, como foi o caso da varíola, que incidiu na década de 1860, matando muitos indígenas ou fazendo-os fugir para o interior.
As práticas genocidas não excluíam ações de exploração da mão de obra indígena: como vimos, grupos indígenas vivenciaram a realidade de conflito e guerras, mas também sofreram com a utilização do seu trabalho em modalidades compulsórias (ou, como hoje se denomina, trabalho análogo ou equivalente à escravidão). Foi o caso dos indígenas aprisionados na fazenda do relato do juiz Oliveira, submissos ao capataz da propriedade, que os fazia trabalhar em troca de farinha.
Essas notícias demonstram que a conquista de terras redundava em confinamento dos povos originários, levando-os a uma condição de desarticulação social, o que contribuía para que ficassem vulneráveis a formas diversas de exploração do seu trabalho. Isso porque o confinamento implica perda de território e introdução de um número cada vez mais crescente de indivíduos que am a disputar com os indígenas os recursos da natureza. A resultante disso é a fome, a piora nas condições de vida e a situação de mendicância que ou a acometer diversos povos. Daí os “ataques indígenas”, que – muitas vezes – eram invasões em fazendas para retirada do que ali se plantava ou se criava.
Olhando por esse ângulo também se entende a prática de “entrega” de crianças indígenas por parte dos seus pais, um tema que precisa ser melhor investigado, mas que, antecipadamente, já evidencia que não se tratava apenas de uma ação “espontânea” (motivada pela pressão da fome e da mendicância): há relatos de raptos de crianças indígenas feitos por moradores das vilas e fazendas na região.
A expansão sobre as terras indígenas no Sul e Extremo Sul da Bahia intensificou-se no século XIX, com a implantação de fazendas como alternativa à crise da mineração em Minas Gerais, no século anterior. As regiões vizinhas (inclusas as terras baianas) aram a ter permissão ou mesmo incentivo para serem exploradas. Os conflitos com povos originários (Botocudos, Maxakali, Kamakã, Pataxó…) aumentaram em número, fazendo com que dom João VI decretasse “guerra justa” aos “Botocudos” em 1808. Essas guerras vigoraram oficialmente até a década de 1830, quando foram revogadas. Contudo os conflitos entre nacionais e grupos indígenas permaneceram, uma vez que a instalação de fazendas e serrarias se ampliou no Segundo Reinado. Esse é o contexto que promoveu a citada vulnerabilidade dos originários no Sul e Extremo Sul da Bahia, mediante confinamento e perda territorial, genocídio e exploração do trabalho.
A relação entre terra e trabalho, ou, melhor dizendo, entre perda territorial e inserção em circuitos precarizados de trabalho é um fenômeno que também recaía sobre comunidades indígenas com contatos mais remotos com a sociedade brasileira. Aqui nos referimos àqueles grupos classificados como “índios mansos” ou aldeados, uma categoria que remonta ao Período Colonial e que indicava nações que tinham ado por uma situação histórica que os compeliu a realizar diversas operações de adaptação (“miscigenação”) ao ponto de, em muitos casos, inserir-se de maneira peculiar na sociedade brasileira, mantendo, porém, a sua identidade de grupo. Esses originários, na sua grande maioria, haviam se envolvido nas teias de relações coloniais a partir da estratégia dos aldeamentos, sejam eles religiosos, sejam eles leigos. A formação desses aldeamentos era precedida ou perada pelo vetor da guerra e da subjugação, sendo parte de uma mesma política de conquista. Em outras palavras, os aldeados eram indivíduos que buscavam escapar de um destino mais deletério, representado pela morte física ou pela escravização.
Ao longo do século XVIII, erigiu-se um arcabouço jurídico que reconhecia a posse das terras dos aldeamentos aos indígenas, embasando-se na categoria do indigenato (o direito proveniente da natividade). Dessa forma, definiu-se o conceito de patrimônio indígena, isto é, as terras pertencentes aos índios aldeados, assim como as rendas delas provenientes. Com a legislação pombalina (1755-1758), muitas dessas aldeias tornaram-se vilas ou distritos, sendo que a istração do patrimônio indígena ou a ser exercida pelas Câmaras Municipais, que deveriam zelar pela sua integridade e, quando lotes desses terrenos fossem alugados, suas rendas deveriam ser revertidas em benefício dos indígenas.
No século XIX, toda uma legislação fundiária surgiu com o intuito de incorporar o patrimônio indígena dentro de categorias íveis de serem capitalizadas. Para tal, outra tese ou a ser encampada: a da extinção da categoria de aldeamento pela suposta incorporação dos seus habitantes na massa da população nacional (termo da época). Trata-se, aqui, de negação da identidade indígena como alegação para a apropriação das terras do patrimônio. Esse raciocínio considerava traços de miscigenação cultural e física como sinais da perda do indigenato.
Esse processo de “miscigenação” ocorreu na maioria das povoações com contatos mais longevos com a sociedade brasileira. Na Bahia, à época, essa era a realidade de muitos núcleos, como Prado, Alcobaça, Trancoso, Vila Verde, Olivença, Maraú, Santarém, São Fidélis, Pedra Branca, Pombal, Nova Soure, Mirandela e Aricobé, localidades espalhadas por diversos territórios da província. Isso significa dizer que os habitantes dessas comunidades aram a ser classificados como remanescentes de indígenas (não mais “índios legítimos”) ou mesmo mestiços (caboclos), devendo seus terrenos serem convertidos em terras devolutas (bens próprios nacionais).
Nesse sentido e na forma da Lei das Terras (1850) e legislação que a regulamentava, a maioria dessas povoações teve seu patrimônio revogado, tendo seus “remanescentes”, em alguns casos, recebido pequenos lotes na dimensão de sítios ou chácaras inapropriados para a reprodução da vida social grupal. Os terrenos restantes foram colocados em hasta pública ou comercializados de diversas formas, sob a istração das Câmaras Municipais, as quais, a partir da Lei Eleitoral de 1828, aram gradativamente a excluir a representação indígena nas vilas surgidas a partir dos aldeamentos.
Era a oficialização de um fenômeno que já estava em curso há décadas (desde a Colônia), por meio dos esbulhos ou invasões ilegais às terras das aldeias. Esse processo de perdas foi vivenciado de maneira dramática pelos indígenas, muitos dos quais reagiram através da denúncia ou por meio das revoltas, conforme notamos com muita nitidez em Pedra Branca e Mirandela, a partir de 1830.
Esse movimento impeliu com mais intensidade muitos ex-aldeados nos circuitos de exploração da mão de obra no ambiente rural, ando a estar mais e mais subordinados aos proprietários locais, tornando-se agregados das fazendas, num processo de proletarização indígena. Essa resultante vai ao encontro dos interesses de uma parte significativa da sociedade brasileira, tendo como representante o Estado, os quais, de maneiras variadas, já se utilizavam do trabalho indígena no século XIX. Esses interesses estão presentes nas políticas indigenistas à época, conforme se pode notar no Decreto 426 de 1845. Como exemplo do emprego da mão de obra indígena, podem-se destacar o serviço militar (exército e marinha), a navegação comercial, a construção de obras públicas, a agricultura, a pecuária e a extração de madeiras. No serviço militar, merece menção o recrutamento de indígenas na Guerra de Independência e na repressão à Sabinada (1837-1838).
A investigação desses fenômenos na Bahia do século XIX remete a uma reflexão acerca das diversas formas de utilização da força laboral indígena. Trata-se de um ponto de abordagem que busca colaborar para o debate sobre a importância do fator trabalho para as políticas indigenistas no Império. É também um convite a pensar de maneira articulada duas dimensões das relações estabelecidas entre povos originários e sociedade brasileira naquele contexto: a exploração da mão de obra estava interligada ao avanço sobre o território indígena.
Prof. André de Almeida Rego 4t5a1k
É professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e autor da tese “Trajetórias de Vidas Rotas: terra, trabalho e identidade indígena na província da Bahia - 1822-1862” (UFBA, 2014).
SAIBA MAIS:
PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. O Tempo da Dor e do Trabalho: a conquista dos territórios indígenas nos Sertões do Leste. Salvador: EDUFBA. 2014.
OLIVEIRA, Renata Ferreira de. “O Vasto Teatro Civilizatório”: os indígenas e o trabalho no Brasil Imperial entre 1845 a 1890 na região do Jequitinhonha. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia (PPGH-UFBA). 2023.
SANTOS, Fabrício Lyrio (Org.). Os Índios na História da Bahia. 2ª Edição. Belo Horizonte: Fino Traço. 2022.