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Uma mulher Puri retratada na obra “Cabeças de Índios”. 5d1v59 |
Victória, uma indígena Puri: a história de uma escravizada e de sua família em busca da liberdade no Sertão da Farinha Podre – Uberaba, 1846.
por Robert Mori
Em 2022, durante uma fiscalização, a Auditoria-Fiscal do Trabalho de Mato Grosso do Sul resgatou sete trabalhadores indígenas do povo Guarani Kaiowá. Eles trabalhavam em uma fazenda na cidade de Porto Murtinho e suas condições de trabalho eram análogas à escravidão. Viviam em condições degradantes, caminhando longas distâncias para aplicar agrotóxicos e construir cercas.
Desde o século XVI, o trabalho dos povos originários que aqui viviam foi utilizado de diversas maneiras: corte e transporte do pau-brasil, nos engenhos de cana de açúcar, na mineração, em guerras contra outros povos indígenas, nas atividades agropastoris, nos afazeres domésticos. Enfim, onde houvesse algum tipo de ofício a ser desempenhado, havia a existência do trabalho escravo indígena, mesmo que em alguns momentos da história ele fosse proibido.
A história que vou contar é uma história de luta, resistência e perseverança em busca da liberdade. Liberdade para uma família escravizada descendente de uma matriarca indígena cujo nome era Victória. Conforme ela afirmou em depoimento, nasceu em uma aldeia Puri no sul de Minas Gerais no quartel final do século XVIII e, ainda criança, foi capturada por caçadores. Tal fato se assemelha à história dos kurucas, crianças Borum (Botocudo), que eram apresadas e vendidas como escravizadas aos não-indígenas.
Após o apresamento no sertão, a criança indígena foi vendida ao casal João e Rosa, moradores de uma fazenda em Dores da Boa Esperança, também no sul mineiro. Nesse local ela ou a ser conhecida como Victória, sendo criada por uma escravizada mestiça cujo nome era Anna (considerada sua mãe). A partir daí, teve sua “identidade étnica” transmutada de indígena para parda.
Victória desde cedo desempenhou seu trabalho no âmbito doméstico: possivelmente cozinhava, limpava a residência de seus donos, fiava, cosia, enfim, era a responsável pelos afazeres comuns aos cuidados que se deve ter com uma residência. Com o falecimento de João em 1798, foi realizado o inventário dos bens do falecido e Victória ou a pertencer à viúva. Contudo, foi comprada em 1814 pela filha do casal, Rosa, que era concubina de Lourenço. Rosa e Lourenço posteriormente se mudaram de Dores da Boa Esperança para a Vila de Sacramento, no oeste mineiro. Eles eram geralistas, ou seja, migrantes oriundos do sul e da região mineradora de Minas Gerais que buscavam novas áreas para a abertura de fazendas que seriam utilizadas para as atividades agropastoris.
Nessa mudança, em um ato de resistência, Victória tentou fugir para o sertão, possivelmente em busca de seus parentes Puri que porventura ainda viviam em alguma aldeia na região. Recapturada por seus donos, ela foi jungida ao “carro de sua mudança, obstando assim sua fuga”. Residindo no oeste de Minas Gerais e com o falecimento de Rosa, Victória ou a pertencer à sua filha, Luísa, casada com Antônio Telles da Silva Brandão, moradores na Vila de Santo Antônio e São Sebastião de Uberaba.
A primeira tentativa de libertar Victória do seu cativeiro se deu em 1846, a partir dos “Avisos do Ministério da Justiça – Sobre o trabalho dos Índios em Casa de Particulares e Outras Providências”, de 02 de setembro de 1845. Esses “Avisos” tinham como principal objetivo saber como era utilizada a mão de obra indígena no Império. A preocupação central dos “Avisos” residia na utilização dos indígenas como escravizados. No caso em tela, o juiz municipal e de órfãos, tenente-coronel Jose Teixeira Alvares, a partir da “fama pública” existente na Vila de Uberaba – que afirmava ser Victória uma indígena –, deflagrou a “Ação de Liberdade” contra os “proprietários” da escravizada. Convém salientar que a última lei que proibiu a escravização de indígenas foi a Lei Imperial de 27 de outubro de 1831, que revogou as cartas régias que autorizaram as guerras aos Botocudo e Kaingang.
No ano de 1846, Victória possuía cinco filhos e sete netos, todos eles na condição de escravizados pertencentes a Antônio, um grande proprietário de escravos em Uberaba. As filhas, como a mãe, labutavam no trabalho doméstico; enquanto os filhos trabalhavam na lavoura e na pecuária. Logo no início da Ação Victória foi interrogada, sendo reconhecida o tempo todo pelo juiz como indígena. Ela narrou a sua vida, desde a sua captura até o ano de 1846, data do interrogatório. Victória afirmou ser livre, por descender de um ventre indígena.
Mesmo não sabendo ler, Victória tinha conhecimento de seu injusto cativeiro. É interessante notar que os escravos mantinham uma intensa comunicação entre eles e ressignificavam práticas sociais que objetivavam garantir o domínio da classe senhorial. Victória deve ter travado contato com escravizados, libertos, ou até mesmo com letrados que a advertiram sobre a sua condição.
Logo depois de Victória, Lourenço, sogro de Antônio, foi interrogado e afirmou dentre outras coisas que ela não era indígena, mas filha legítima de Anna, uma mestiça escravizada. O juiz então solicitou a Antônio que apresentasse as provas que poderiam confirmar o cativeiro de Victória. Ele contou com o apoio do tenente-coronel Francisco Rodrigues de Barcelos – agente executivo em Uberaba –, para que fosse inquirir as testemunhas indicadas em Dores da Boa Esperança. Francisco assim o fez e ouviu de todas elas que não havia mais indígenas na região do sul de Minas Gerais há décadas, o que indicava, portanto, que Victória não poderia ser indígena.
Juntadas as “provas” o juiz claramente mudou de conduta e afirmou que Victória não era indígena. Anos depois, o filho do magistrado confirmou em juízo que seu pai foi pressionado por membros da elite para que acabasse com a Ação de Liberdade, tendo sua família se mudado pouco tempo depois para Franca, província de São Paulo. Os responsáveis pelas ameaças foram o já mencionado Barcelos, além de Antônio Cassimiro de Araújo e Antônio Borges Sampaio, membros da elite política e econômica uberabense. Dessa forma, Victória foi mantida escravizada, assim como seus filhos, netos e bisnetos que voltariam buscar a liberdade quase três décadas depois. Se fosse provada a identidade indígena da escravizada, Antônio, um grande proprietário de escravos, perderia a quase totalidade de seu plantel. Para a elite uberabense, isso poderia representar um grande perigo.
Cento e setenta e seis anos separam a história da indígena Puri escravizada Victória, daquela narrada no início do texto, quando sete Guarani Kaiowá foram resgatados em condições de trabalho análogas à escravidão. Não só o período cronológico, como também os povos envolvidos, as regiões e os tipos de ofício desempenhados por eles mostraram-se distintos. Contudo, um fato é inegável e semelhante nos dois casos: a escravidão indígena foi – e ainda é – uma realidade na história do Brasil. Até quando?
Prof. Robert Mori 1j4653
Possui Doutorado em História pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e é docente da Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais (SEE/MG)..
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SAIBA MAIS:
DORNELES, Soraia Sales. Trabalho compulsório e escravidão indígena no Brasil imperial: reflexões a partir da província paulista. Revista Brasileira de História, pp. 87-108, 2018. Disponível em: < https://www.scielo.br/j/rbh/a/rgy7QbXBkb5chc8xRvrMxsc/abstract/?lang=pt >.
MORI, Robert. Victoria: “indígena brasileira” ou “parda”? Uma análise da ação de liberdade de uma escravizada e de seus descendentes na vila de Santo Antônio e São Sebastião de Uberaba, Minas Gerais, 1846. Revista Brasileira de História, v. 44, n. 96, p. 1-22, 2024. Disponível em: < https://www.scielo.br/j/rbh/a/dwPjccfLgXSCVknzdD76G3g/?format=pdf&lang=pt >.
SAMPAIO, Patrícia Melo; HENRIQUE, Márcio Couto. História, memória e escravidão ilegal dos índios no Brasil, século XIX. In: IVO, Isnara Pereira; GUEDES, Roberto. Memórias da escravidão em mundos ibero-americanos (Séculos XVI – XXI). São Paulo: Alameda, 2019.