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UM CHEFE INDÍGENA CONTRA O GOVERNADOR NA AMAZÔNIA COLONIAL? 1i2k1c

Na década de 1780, conflito sore recrutamento de trabalhadores envolvendo liderança indígena da Amazônia e outras autoridades chegava ao arbítrio da própria rainha de Portugal
 EXISTIU UMA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL?

Alexandre Rodrigues Ferreira. Pesca da tartaruga. BNRJ, I-21,1,001A, Manuscritos_mss1255454 622hv

Um chefe indígena contra o governador na Amazônia colonial? Na década de 1780, conflito sobre recrutamento de trabalhadores envolvendo liderança indígena da Amazônia e outras autoridades chegava ao arbítrio da própria rainha de Portugal

por Rafael Ale Rocha

Por volta de 1785, a maior autoridade da colônia portuguesa na Amazônia, o governador Martinho de Souza e Albuquerque, desferiu pesadas injúrias contra uma outra altíssima autoridade: o indígena chamado Manuel Pereira de Faria, que ocupava um cargo oficial chamado “principal” da Vila de Oeiras (localizada no Pará) e o posto de “mestre de campo” ou comandante de uma tropa miliciana de Belém (capital da colônia portuguesa na Amazônia). Assim, estando as duas autoridades na sala do governador, na presença de diversas outras pessoas, Martinho de Souza e Albuquerque chamou Manuel Pereira de Faria de “negro” e “cachorro”.

O chefe indígena não ficou calado ao ouvir as ofensas, pois, nesse momento, advertiu ao governador destacando a sua nobre condição de mestre de campo, quando o mesmo governador, batendo o pé no chão, ameaçou-o com a retirada desse posto (“dar baixa”). Além do mais, teria enviado carta à própria rainha de Portugal narrando a desavença e solicitando a intervenção da monarca, visto que a sua condição de mestre de campo fora anteriormente confirmada pela própria monarquia por meio de um documento chamado “carta patente”. Nessa correspondência, buscando explicação para o ocorrido, o principal Pereira de Faria afirmaria que a discórdia contra o governador teve início quando o principal negou a concessão de indígenas a uma outra autoridade aparentemente aliada ao governador, o “diretor” da vila próxima de Portel.

Portanto, a história do chefe indígena Manuel Pereira de Faria ilustra a alargada influência, junto à sociedade colonial e à própria monarquia, que as lideranças e os trabalhadores indígenas galgaram durante a colonização na Amazônia. Em relação à segunda metade do século XVIII, as leis que tratavam da questão indígena lançadas naqueles anos tinham íntima relação com os problemas fronteiriços ocorridos entre os reinos de Espanha e Portugal por toda a América do Sul. Nesse sentido, o Tratado de Madri, assinado pelas duas coroas em 1750 para definir os limites coloniais de Espanha e Portugal na América, estipulava que os limites naturais e a ocupação de fato do território embasariam a definição das fronteiras.

Dada a incapacidade de enviar colonos portugueses para ocupar a vasta região amazônica, a monarquia investiu na “transformação” dos indígenas considerados vassalos do rei português em lusitanos de fato, promulgando, para isso, uma série de leis: proibindo a escravidão dos indígenas por quaisquer meios (1755); retirando dos missionários o seu antigo comando sobre as povoação indígenas conhecidas como aldeamentos (1755), posteriormente, transformadas nas chamadas vilas pombalinas – municípios com câmaras, vereadores e juízes; e, dentre outras leis, a legislação conhecida como Diretório dos Índios (1757), confirmada por alvará régio (1758), que, entre outras questões, buscava a transformações dos costumes propriamente indígenas, num processo chamado de “civilização”, e atribuía às suas lideranças conhecidas como “principais” honras e funções diversas.

Antes da promulgação do Diretório, em relação ao método de concessão de trabalhadores livres dos aldeamentos missionários, um regulamento de 1686 definia que cabia aos governadores com duas pessoas nomeadas pela câmara de Belém, e assistência dos missionários, a realização das “repartições” dos índios livres aos moradores por via da concessão de licenças. Pelo Diretório de 1757, também cabia aos governadores, por meio de um documento chamado “portaria”, autorizar a concessão de trabalhadores das povoações indígenas aos colonos, mas a entrega ou “distribuição” de fato desses indígenas era obrigação dos “principais” das mesmas comunidades. Conforme a legislação, aos chamados “diretores”, um agente de tutela instituído pelo Diretório e nomeado pelo governador, cabia zelar pelo cumprimento dessa entrega junto aos principais.

Assim, ao longo da segunda metade do século XVIII, alguns “principais” ou líderes indígenas das diversas vilas pombalinas encontravam-se numa difícil posição. Deveriam, a um só tempo, conceder trabalhadores de suas comunidades para serviços diversos, conforme as portarias concedidas pelos governadores, num cenário no qual os trabalhadores índios das mais diversas vilas poderiam simplesmente se recusar a servir aos colonos ou à Coroa. Nesses momentos, por vezes, esses índios empreendiam fugas por curtos períodos, posteriormente retornando às suas vilas, ou durante temporadas indeterminadas. A habilidade de manter a estabilidade das vilas e conceder trabalhadores, além do parentesco com antigas autoridades indígenas, permitiu a algumas lideranças indígenas buscarem, às vezes da própria monarquia, postos oficiais e outras benesses.

Era o caso de Jerônimo Antônio Rodrigues, que, em 1759, conquistou o posto de principal da Vila Nova Del Rey pela capacidade de governar os moradores dessa povoação. Silvestre Francisco de Mendonça Furtado, por sua vez, em 1767, solicitou da própria monarquia herdar do pai o posto de sargento-mor da Vila de Porto de Mós, destacando o fato de seu pai ter povoado e estabelecido a povoação com índios. Já Romão Vieira, em 1782, recebeu o posto de principal da Vila do Conde pela sua habilidade em preparar índios para o serviço do Estado e por ser neto de uma liderança que ocupava o mesmo cargo.

Retomando a história do principal de Oeiras Manuel Pereira de Faria, em sua suposta carta à soberana, o chefe indígena habilmente destacava que concedeu os seis índios pedidos por portaria do governador ao diretor de Portel, mas negou um pedido do mesmo diretor por muitos índios sem a devida portaria. O chefe indígena também insinuaria ilegalidades envolvendo o manejo de trabalhadores indígenas praticadas pelo diretor de Portel, ilicitude não devidamente explicada pelo principal de Oeiras. De qualquer forma, Pereira de Faria mencionava uma portaria do governador concedendo 60 índios ao mesmo diretor de povoações circunvizinhas a Portel, entre elas Oeiras. Essas ações, segundo a suposta carta do principal, teriam gerado fugas em massa na região. Só da Vila de Oeiras teriam fugido 52 famílias.

Em sua defesa, o governador negaria as acusações, enviando ao reino, inclusive, uma outra carta atribuída ao principal de Oeiras na qual boa parte das acusações eram desmentidas. Mas a atuação do chefe, que foi diretor da mesma vila de Oeiras em dois momentos (entre 1767 e 1776 e a partir de 1790), indicava a sua hábil capacidade de, direta ou indiretamente e a um só tempo, atuar na vida política colonial e tentar barrar o excesso das demandas que pesavam sobre sua comunidade.


Prof. Rafael Ale Rocha 61d1a

É professor do Departamento de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e autor do livro Os Oficiais Índios na Amazônia Pombalina. Sociedade, Hierarquia e Resistência (2022).

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SAIBA MAIS:

COELHO, Mauro Cézar. Do sertão para o mar. Um estudo sobre a experiência portuguesa na América: o caso do Diretório dos Índios. 432 f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.

DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos. Colonização e relações de poder no Norte do Brasil na segunda metade do século XVIII. Lisboa: CNCDP, 2000.

SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos Partidos: etnia, legislação e desigualdade na colônia. Sertões do Grão-Pará, c. 1755 - c. 1823. Manaus: Edua, 2011.

SOMMER, Bárbara. Negotiated Settlements: native amazonians and portuguese policy in Pará, Brazil, 1758-1798. Ph.D., History, University of New Mexico, 2000.