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Monumento à Salsipuedes 2a3e6k |
"Inúteis” para o trabalho doméstico: O trabalho forçado foi uma das estratégias para eliminar os povos indígenas no Uruguai, e faz parte de uma história nunca contada – Uruguai.
por sca Repetto
Na História da América Latina, o processo de colonização trouxe consigo a apropriação de terras e recursos dos povos indígenas, assim como a tentativa de eliminar qualquer singularidade da cultura de que faziam parte. No Uruguai, durante a Independência, existiu uma política de governo de eliminar os nativos, em particular os Charrúa. Os mecanismos foram principalmente os massacres, aprisionamentos de lideranças e distribuições que tinham por finalidade forçá-los a trabalhar como serventes em casas de família e em navios estrangeiros.
Na década de 1830, quando o país declarou Independência, muitos fazendeiros já vinham pressionando as autoridades para que trouxessem tranquilidade ao campo. Na época, o país ava por grande instabilidade política e o interior sofria consequências das guerras. Os fazendeiros aram a denunciar os Charrúa como culpados pela insegurança, indígenas que não haviam sido reduzidos nas missões jesuíticas e, portanto, que ainda circulavam pelo território. Segundo aqueles, os Charrúa roubavam seu gado, matavam seus trabalhadores e aterrorizavam os moradores. O país, que até hoje tem como base de sua economia a produção agrária, não podia se dar o gosto de não responder às demandas dos latifundiários. Além de serem fazerem a principal fonte de renda do novo Estado, os donos da terra eram a base de apoio político do governo que havia assumido o poder. Por essa causa, o primeiro presidente da República, Fructuoso Rivera (1789-1854), em abril de 1831, organizou seu exército e mandou aniquilar os Charrúa. O primeiro desses sucessos ficou conhecido como o Massacre de Salsipuedes, pois foi na beira do riachuelo de mesmo nome, no centro-norte do país, onde o exército reuniu várias lideranças junto a suas famílias e as massacrou.
Os jornais da época mostraram a campanha militar como um sucesso e, até recentemente, os livros escolares de História mostravam esse ano como a data da “desaparição indígena”. No entanto, a parte da história que nunca é contada é que as mulheres, crianças e homens que sobreviveram a esse massacre (e aos que se seguiram durante anos), foram levados à capital, Montevidéu, e, desde aí, obrigados a trabalhar. Especificamente, crianças e mulheres foram obrigadas a trabalhar em serviço doméstico, e homens foram enviados como serventes de navios e soldados no exército.
Alguns dos problemas para se pesquisar esses fatos é que os governos da época não registraram como se deu a incorporação dos charrúas a esses espaços. Ou seja, como é que eles viveram essas violências, e o que pensavam e faziam a respeito. O que temos como fonte histórica são documentos que dizem respeito a atos de distribuição, ou seja, notas de militares em que se deixaram constâncias das pessoas que tomaram para si indígenas. Além disso, temos o a decretos sobre as decisões de governo e alguns outros documentos onde se registraram abandonos, mortes e encarceramentos de Charrúa em diversas situações.
Dois dias após Salsipuedes, o governo emitiu um aviso onde comunicava que vários Chefes e Oficiais militares haviam recebido indígenas adultos para educá-los, e para serviço próprio. Alguns dias mais tarde, o principal jornal do Uruguai convidava famílias de Montevidéu interessadas em colaborar no processo de domesticação dos selvagens, que seriam distribuídos indígenas a quem os solicitasse. Cada solicitante poderia tomar no máximo um indígena, e se, pela ordem da fila, ganhasse uma criança ou mulher jovem, devia levar também uma mulher velha. Em contrapartida, os solicitantes deviam seguir uma série de orientações. Especificamente: “tratá-los bem, educá-los e cristianizá-los” (1831). Embora a regra fosse levar uma criança e uma mulher velha, ou apenas uma mulher velha, há registros de militares de alto nível que levaram até 9 indígenas, entre crianças e adolescentes.
Mas o quê tudo isso tem a ver com o trabalho? Se olharmos mais de perto o que estava acontecendo no país, vemos que a Constituição da República proibia o ingresso de novos escravos, e dali a pouco entraria em vigor a lei de ventre livre. Isso significou uma importante queda da mão de obra escrava disponível, o que explica em boa medida o grande interesse que houve em levar indígenas para sua “educação”.
Mas o projeto não funcionou tão bem quanto esperado pelo governo. Nos registros da prisão é possível observar com mais detalhe os motivos que levaram os montevideanos a levar os Charrúa para suas casas. Algumas notas apontam que “amos” tentaram devolver mulheres, outros que jogaram elas nas ruas e não estavam dispostos a recebê-las novamente por mais súplicas que a polícia fizesse. A justificativa expressa para os abandonos era que essas mulheres eram “inúteis”. Inúteis, é claro, para o trabalho doméstico. Foram tantas as tentativas de “devolver” indígenas que o Ministro encarregado da operação emitiu um comunicado expressando que “a razão de ser inútil não é suficiente, pois até receberem educação todas são” (1831).
Por sua parte, os homens adultos foram inicialmente levados à prisão até que se encontrasse o que fazer com eles. Cerca de um mês mais tarde, o governo enviou à Capitania do porto de Montevidéu o seguinte aviso: “O governo quer que os capitães dos navios que vão para o exterior saibam que está disposto a entregar um ou dois índios para se dedicarem aos serviços que julgarem convenientes, sem permitir que desembarquem enquanto estiverem no porto” (1831). Em outras palavras, o destino dado aos homens adultos foi o trabalho forçado em navios estrangeiros, enquanto outros, os não pedidos pelos capitães, ficaram à disposição do exército para servir como soldados.
No Uruguai, assim como em tantos outros países, uma das táticas coloniais para se combater o que fora chamado de “o problema indígena”, foi obrigar os grupos indígenas a se assentarem no território e tentar assimilá-los à sociedade branca dominante. As formas para isso são foram variadas, mas obrigar os nativos ao trabalho forçado foi uma delas. Certamente, os Charrúa não fugiram dessa política ,e nem das divisões de gênero que reinavam na época, motivo pelo qual se decretou a entrada deas mulheres na esfera doméstica e, simultaneamente, a saída does homens em navios para o estrangeiro.
Como mostrado brevemente, no Uruguai não se visibilizaou que houveram a existência de sobreviventes daos massacres, e. Mas menos ainda se faloua nas condições daquela sobrevivência. Embora os Charrúa não foram tenham sido objeto de compra e venda, foram sim amarrados sem escolha a esquemas de trabalho forçado por meio dos queais, ao mesmo tempo que se dizia querer educá-los e integrá-los à sociedade, na verdade, procurava-se nfazer deles mão de obra escrava. Pese a isso, os Charrúa de hoje lutam para que sua presença existência seja reconhecida.
Profa. sca Repetto 1b5n48
É professora na Universidad de la República (Uruguai) e autora do livro “Arqueologia do apagamento: narrativas de desaparecimento charrúa no Uruguai” (Hucitec, 2019).
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SAIBA MAIS
Arce, Darío. Uruguay, una nación de extremo-occidente en el espejo de su historia indígena. Montevideo: Fundación de Cultura Universitaria, 2023.
Basini, José. Índios num país sem índios. A estética do desaparecimento: um estudo sobre imagens índias e versões étnicas. Manaus: Travesía, 2015.
Olivera, Andrea. Devenir charrúa en Uruguay: una etnografía junto con colectivos urbanos. Montevideo: LUCIDA, 2016.
Repetto, sca. Uma arqueología do apagamento. Narrativas de desaparecimento indígena no Uruguai desde 1830. São Paulo: HUCITEC, 2019.