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INDÍGENAS ABRINDO PICADAS NO BRASIL IMPÉRIO 2i242e

Atuando como soldados, lavradores, intérpretes ou abridores de estradas, grupos indígenas de Minas Gerais foram sistematicamente recrutados com o fim do tráfico transatlântico – Minas Gerais
 EXISTIU UMA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL?

Entre diferentes atores, indígenas abrem picada no interior de Minas Gerais, 1816Maximilian Wied-Neuwied (Neuwied, Alemanha 1782 – 1867).Capitão Bento de Lourenço Abreu e Lima abre a nova estrada através da floresta em Mucuri de Porto Alegre para Minas Novas, publicada em 1822.Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, Brasil. Coleção Brasiliana/ Fundação Estudar. Doação da Fundação Estudar, 2007. 4a6n42

Indígenas abrindo picadas no Brasil Império: Atuando como soldados, lavradores, intérpretes ou abridores de estradas, grupos indígenas de Minas Gerais foram sistematicamente recrutados com o fim do tráfico transatlântico – Minas Gerais

por José Henrique L. Santos

Mesmo com a inserção cada vez maior de atores indígenas em diferentes âmbitos profissionais, ainda é comum ouvirmos expressões que reproduzem a ideia do “índio preguiçoso”. O estereótipo sobre o modo de vida indígena em que se “vive do que a natureza dá” é reforçado em filmes, músicas, desenhos e demais produções culturais. Contudo, desde o início da colonização na América, a mão de obra indígena foi uma das mais exploradas e menos documentadas. Nesse sentido, pretende-se mostrar aqui como os braços indígenas foram fundamentais na construção do Estado nacional brasileiro. A partir do processo de Independência iniciado em 1822, duas questões aram a preocupar cada vez mais as elites política e econômica do Brasil: a construção de estradas e a oferta de trabalhadores. O desenvolvimento de estradas serviria para o escoamento de mercadorias e o maior controle do Estado sobre um vasto território ainda pouco conhecido. Já o interesse por maior disponibilidade de trabalhadores era aguçado conforme o avanço de políticas abolicionistas apontava para o fim do sistema escravista, mesmo que gradualmente. Desse modo, ao longo do século XIX, a expansão de rotas terrestres pelo interior do Brasil foi um dos principais fatores para a desarticulação das terras tradicionais indígenas. Consequentemente, desprovidos do seu principal instrumento de trabalho, a terra, grupos indígenas tornaram-se suscetíveis a ter sua força de trabalho fortemente explorada.

Minas Gerais, uma das últimas províncias a abolir oficialmente o trabalho escravo de indígenas, manteve a prática de recrutá-los sob a denominação de trabalhadores livres para diferentes funções: soldados, lavradores, trabalhadores domésticos, canoeiros, abridores de estradas etc. Sem saída para o mar, o governo mineiro investiu grandes esforços para viabilizar uma rota de comunicação e circulação com o litoral atlântico. Nesse contexto, o engenheiro prussiano Júlio Borell Du Vernay foi contratado por Minas Gerais para executar a construção da estrada com destino ao Espírito Santo, para então alcançar o litoral. Dessa forma, em 1854, o engenheiro apresentou um orçamento detalhado com os custos da via terrestre. De acordo com Júlio, a primeira etapa para a construção seria a derrubada de árvores e a retirada de raízes do leito da estrada. Sendo essa a parte mais difícil, o trabalho seria realizado integralmente por indígenas. Desse modo, além de exercerem o trabalho mais pesado da obra, o orçamento apontava que os indígenas receberiam a menor remuneração, junto com os soldados que deveriam acompanhar os trabalhadores. Ainda segundo o engenheiro, conforme a estrada avançasse para áreas em que não fosse possível contar com trabalhadores indígenas, o custo de cada légua construída teria um aumento de 28,4%. Ou seja, a construção de estradas pelo Estado, além de desconfigurar as moradas indígenas, empregava esse mesmo contingente populacional pagando o salário mais baixo em relação a outros trabalhadores.

No ano seguinte, o cidadão Francisco de Paula Faria foi nomeado para dar início a uma parte da estrada projetada pelo engenheiro Júlio. A nomeação de Faria não era à toa. Além de ser proprietário de terras por onde a estrada aria, já havia obtido por diversas vezes o aval da província mineira para utilizar grupos indígenas aldeados na abertura de outras picadas. Desse modo, Francisco Faria não encontrou dificuldade para recrutar dezenas de trabalhadores indígenas para a abertura da estrada. Ao relatar o andamento dos trabalhos, Faria informou que havia distribuído entre os indígenas roupas e ferramentas, sem qualquer menção ao pagamento de salários. Como a disputa pelos braços indígenas era grande, não tardou para que surgissem acusações de que Faria não havia pagado os trabalhadores.

Assim, João Alvares, responsável por outro trecho da mesma estrada, utilizou como mão de obra os mesmos indígenas que haviam trabalhado para Faria. Segundo João Alvares, ao chegarem para o andamento da obra, os indígenas se queixaram de não terem sido remunerados no trabalho comandado por Faria. Obviamente a acusação de João Alvares refletia a disputa entre agentes que buscavam ter controle cada vez maior sobre esses trabalhadores. Conforme a província aprovava projetos de construção de estradas em áreas de concentração indígena, surgiam proprietários buscando arrematar tais obras e, dessa forma, poder contar com os braços indígenas. Esses fazendeiros eram beneficiados com a abertura de estradas que favoreciam suas propriedades e ainda recebiam gratificação pelo serviço público prestado. Além disso, outro grande interesse desses proprietários era a possibilidade de desviar os trabalhadores indígenas para serviços particulares em suas fazendas, algo bastante comum.

Porém, mesmo com uma série de dispositivos condicionando a exploração dessa força de trabalho, os indígenas tinham clareza da situação. Tanto é que o deslocamento de grupos indígenas à capital da província, onde se encontravam os agentes responsáveis pelas políticas viária e de catequese, eram constantes. Desse modo, em 1854, um grupo de 58 indígenas que havia sido recrutados por Faria chegou na capital, Ouro Preto, reclamando da falta de pagamento por serviços prestados. A reclamação era referente a outra estrada, diferente da projetada pelo engenheiro Júlio. Logo, observa-se que havia certa leniência por parte das autoridades em permitir que determinados atores continuassem explorando os indígenas, como foi o caso de Faria. Mesmo assim, após negociações, o grupo retornou para aldeia suprido de ferramentas, vestimenta e o pagamento de 4$000 (quatro mil réis) a cada uma das mulheres do grupo. Portanto, mesmo que considerados livres, os grupos étnicos foram (e continuam sendo) pressionados pelo avanço de estradas, do agronegócio e demais empreendimentos que impactam seus meios de subsistência. Nesse movimento, o indígena se vê cada vez mais pressionado a vender sua força de trabalho por preços irrisórios e em condições precárias. Casos recentes de resgate de indígenas em condições de trabalho análogo à escravidão em fazendas pelo interior do Brasil comprovam a permanência desse fenômeno. Longe de viver “num eterno domingo”, o modo de vida indígena é estruturado no trabalho com a terra. Quem ganhou e continua ganhando com o discurso do “índio preguiçoso” são aqueles que cobiçam suas terras e seus braços.


Prof. José Henrique L. Santos d2v6

É mestrando em História pela Unifesp e professor de História na rede municipal de São Paulo.

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SAIBA MAIS:

OLIVEIRA, Tatiana G. de. Terra, trabalho e relações interétnicas nas vilas e aldeamentos indígenas da província do Espírito Santo (1845-1889). Tese de Doutorado em História. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.

OLIVEIRA, Renata F. de. “O VASTO TEATRO CIVILIZATÓRIO”: OS INDÍGENAS E O TRABALHO NO BRASIL IMPERIAL ENTRE 1845 E 1890 NA REGIÃO DO JEQUITINHONHA. Tese de Doutorado em História. Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2023.

SANTOS, José H. L. CAMINHOS DA EXCLUSÃO NO BRASIL IMPÉRIO: TRABALHO COMPULSÓRIO INDÍGENA NA CONSTRUÇÃO DE ESTRADAS NA PROVÍNCIA DE MINAS GERAIS (1840-1870). In: Anais do V encontro de pós-graduandos da Sociedade de Estudos do Oitocentos (SEO). São Luís (MA), UFMA, 2023.