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PARA SER PROTAGONISTA DA HISTÓRIA, MULHER NÃO PRECISA "VIRAR HOMEM” 3828q

Mulheres lideraram uma fuga de pessoas escravizadas na Amazônia colonial (1773) – Pará
 EXISTIU UMA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL?

Arquivo Público do Estado do Pará (APEP), códice 125, documento 05. 6743

Para ser protagonista da História, mulher não precisa "virar homem”: mulheres lideraram uma fuga de pessoas escravizadas na Amazônia colonial (1773) – Pará.

por Márcio Couto Henrique

Quando era menina, Carolina Maria de Jesus (1914-1977) se incomodava com o fato de não ver mulheres representadas como sujeitos de destaque nos livros de História. Em seu livro Quarto de despejo: diário de uma favelada, publicado em 1960, ela escreveu: "Quando eu era menina o meu sonho era ser homem para defender o Brasil porque eu lia a História do Brasil e ficava sabendo que existia guerra. Só lia os nomes masculinos como defensor da pátria. Então eu dizia para a minha mãe:

– Por que a senhora não faz eu virar homem?

Ela dizia:

– Se você ar por debaixo do arco-íris você vira homem.

Quando o arco-íris surgia eu ia correndo na sua direção. Mas o arco-íris estava sempre distanciando (…). Eu cansava e sentava”.

Carolina era uma mulher pobre, negra, nascida em Minas Gerais, mas que morava em uma favela de São Paulo quando publicou esse livro. Ela teve pouca educação formal e sua escrita difere da norma culta. Apesar disso, seu livro é cheio de ricas reflexões. De fato, sendo a História tradicionalmente escrita por homens, as mulheres pouco aparecem nas narrativas dos fatos históricos. Entre as mulheres, as negras aparecem pouco e as indígenas aparecem menos ainda. Neste pequeno texto, vou apresentar uma fuga de escravizados liderada por mulheres na Amazônia, em 1773.

O documento que guarda a memória dessa fuga de escravizados se encontra no Arquivo Público do Pará, localizado na cidade de Belém do Pará. Trata-se de uma carta enviada pelo fazendeiro Antonio José Pinto às autoridades da então província do Grão-Pará, aos 15 de fevereiro de 1773. Nessa época, o Brasil era uma colônia de Portugal e o que nós chamamos atualmente de Estados, eram chamados de capitanias. Pois bem, a capitania do Grão-Pará reunia os atuais Estados do Pará, Amapá, Amazonas e Roraima. Em sua carta, o fazendeiro informou que 24 escravizados fugiram de sua fazenda, localizada em lugar chamado Cumarú-mirim, na ilha do Marajó. Dizia mais:

“Os cabeças dessa fugida foi uma índia que algum dia foi escrava desta fazenda, chamada Paulina, casada que foi com um cafuzo escravo já falecido e a escrava Joana, cafuza, e os dois índios Antonio e João e o escravo cafuzo Remualdo, a quererem matar um cafuzo seu irmão, que eu tinha nomeado por feitor, por terem desconfiança de que este me dava parte de suas velhacadas (…)”.

O feitor da fazenda, responsável pela vigilância dos escravizados, era um “cafuzo”, ou seja, filho da união entre uma pessoa indígena e uma pessoa negra. Mesmo assim, era ele quem vigiava os demais, incluindo os próprios irmãos. Por isso foi agredido pelos que fugiram, para que não atrapalhasse a fuga.

Observe que “os cabeças dessa fugida”, ou seja, os que lideraram a fuga, foram duas mulheres, Paulina e Joana. A primeira, indígena, e a segunda, “cafuza”. Os historiadores costumam usar uma palavra para identificar os sujeitos principais de uma ação histórica: protagonismo. Quem executa uma ação de protagonismo é, portanto, protagonista da história. As fugas de pessoas escravizadas foram fundamentais para enfraquecer a escravidão no Brasil. Muitos escravizados fugiam e formavam comunidades em locais distantes, onde procuravam viver em liberdade. Essas comunidades eram chamadas de quilombos ou mocambos. Ao liderar uma fuga de pessoas escravizadas, Paulina e Joana, duas mulheres, foram protagonistas dessa ação.

Por muito tempo os livros de História diziam que os indígenas foram substituídos pelos negros como escravos, pois se acreditava que os indígenas não se acostumaram com a escravidão. Na verdade, ninguém se acostuma com a escravidão, pois homens e mulheres, independente da cor de sua pele, nascem para serem livres. A fuga liderada por Paulina e Joana mostra a existência de indígenas escravizados, mesmo em um período em que as leis da época garantiam sua liberdade, a exemplo da lei de 6 de junho de 1755 e do chamado Diretório dos Índios, que ou a vigorar a partir de 1757. Então, podemos concluir que os negros não foram substituídos pelos indígenas como escravos. Na Amazônia, por sinal, o número de indígenas escravizados ou sujeitos a trabalho obrigatório foi sempre maior do que o número de negros. A gente costuma pensar as ações de indígenas e negros de forma separada, mas documentos como esse mostram que, muitas vezes, eles agiram em conjunto. De modo amistoso ou conflituoso, indígenas e negros dividiram experiências no mundo da escravidão.

Outro aspecto desse documento que merece destaque é a referência a famílias constituídas por pessoas escravizadas. Na fuga, Paulina levou seus 4 filhos menores. O documento diz que ela era "forra", ou seja, era uma escrava liberta, que havia conseguido sua carta de alforria, mas seguia trabalhando junto com os que ainda eram escravizados. Joana levou sua irmã com 3 filhos. Narcisa, Vituriana, Beatriz, nenhuma das mulheres escravizadas do grupo abandonou seus filhos. Mesmo com as atribulações da escravidão, essas pessoas não renunciaram à possibilidade de criar seus filhos e de lutar pela preservação de seus vínculos familiares. Ou seja, as pessoas escravizadas não se tornaram “coisas”, como se dizia antigamente nos livros de História.

Vários dos 24 escravizados que fugiram foram apontados pelo fazendeiro como sendo “de bom serviço”, o que nos dá uma ideia dos prejuízos que causaram com a fuga. Alguns eram forros (livres) e haviam recebido pagamento adiantado. Esse é outro aspecto importante desse documento, pois revela que, mesmo quando forros, a situação dos trabalhadores negros não era tão diferente da situação dos escravizados. Além disso, os que fugiram levaram muitas ferramentas da fazenda, tais como enxadas, ferramentas para construir canoas, machados, foices, facões e uma “igarité” (canoa), certamente para recomeçar a vida em liberdade em algum quilombo.

Até o momento não sabemos se essas pessoas conseguiram viver em liberdade em algum quilombo ou se foram capturadas. Mas fica registrado o protagonismo dessas mulheres indígenas e negras na luta pela liberdade e pelo fim da escravidão no Brasil. Sim, as mulheres também foram – e são – importantes na história do Brasil, elas têm nome e história. São Paulinas, Joanas, Viturianas, Narcisas, Adrianas, Zélias, Marielles… Para serem protagonistas da História, elas não precisam “virar homem”, mas sim deixarem de ser silenciadas.


Prof. Márcio Couto Henrique 6l5e6p

É professor da Universidade Federal do Pará e autor do livro Sem Vieira nem Pombal: índios na Amazônia do século XIX, (EdUERJ, 2018).

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SAIBA MAIS:

HENRIQUE, Márcio Couto. Escravidão ilegal e trabalho compulsório de índios na Amazônia (século XIX). In: MOREIRA, Vânia Maria Losada; DANTAS, Mariana Albuquerque; COSTA, João Paulo Peixoto; MELO, Karina Moreira Ribeiro da Silva; OLIVEIRA, Tatiana Gonçalves de (org.). Povos indígenas, independência e muitas histórias. 1a ed. Curitiba: CRV, 2022. p. 501-530.

HENRIQUE, Márcio Couto. O terror da branquitude: violência e racismo contra os indígenas da Amazônia (século XIX). Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 44, n. 96, 2024. Disponível em: http:// dx.doi.org/10.1590/1806-93472024v44n96-04. o em 3 jul. 2024.

SANTOS, Rafael Rogerio Nascimento dos. “Diz o índio...”: políticas indígenas no vale amazônico (1777-1798). Jundiaí: Paco Editorial, 2018.