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ESTÁ PIOR DO QUE ANTES! 4r3c3u

O Ouvidor frente aos desmandos do Governador da Capitania no caso do roubo e venda de crianças indígenas para trabalhar nas plantações – Ceará
 EXISTIU UMA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL?
 

Está pior do que antes! – O Ouvidor frente aos desmandos do Governador da Capitania no caso do roubo e venda de crianças indígenas para trabalhar nas plantações. g6933

por Isabelle Braz Peixoto da Silva

Você sabia, que nos idos de 1757, foram criadas vilas indígenas no Brasil? Essas vilas foram estabelecidas no Período Colonial por um instrumento jurídico que ficou conhecido como “Diretório Pombalino” (“Directorio, que se deve observar nas povoaçoens dos indios do Pará, e Maranhaõ: em quanto Sua Magestade naõ mandar o contrario”). Tal lei visava a integração dos povos originários à sociedade colonial e à economia mercantilista.

O Diretório trouxe mudanças profundas na vida cotidiana dos indígenas e instituiu vários cargos istrativos e jurídicos, tais quais os de diretores de vilas, juízes ordinários, câmara de vereadores, ouvidores, estes últimos, encarregados da fiscalização e das correções na aplicação da justiça.

Como matéria central do novo instrumento jurídico, havia normas relativas ao trabalho indígena, comércio e impostos, aparelhando as vilas para o incremento da atividade comercial e seu engajamento na economia de mercado. Os indígenas aram a ter o estatuto de “vassalos do rei”, igualando-se a outros súditos em direitos e deveres, sobretudo, efetuando pagamento de impostos.

Dentre as determinações do Diretório, interessa destacar que eram considerados aptos ao trabalho os homens entre 13 e 60 anos de idade, os quais eram obrigados a cultivar suas terras com plantações de gêneros alimentícios – arroz, feijão, milho e mandioca – para subsistência da família e para venda. Além disso, eram incentivados a cultivar o algodão, com vistas à instalação de fábricas e comercialização com o estrangeiro, a partir da metrópole, Portugal.

Apesar das obrigações descritas anteriormente, os indígenas não tinham autonomia sobre como realizar seu trabalho, pois o Diretório determinava que metade daqueles aptos a trabalhar deveriam permanecer nas vilas à disposição do serviço real; e a outra metade deveria ser distribuída para prestar serviços aos colonos, por um período determinado de até seis meses. Por seu turno, os colonos deveriam pagar o justo salário do trabalho realizado pelos indígenas. Toda essa logística deveria ser controlada pelos diretores das vilas, com previsão de punições para todos aqueles que não cumprissem suas obrigações, inclusive os próprios diretores das vilas.

Contudo, ontem, como hoje, o que acontecia na dinâmica social nem sempre obedecia ao previsto no ordenamento jurídico. Exemplo disso foi o caso que aconteceu na vila de Arronches (atualmente Parangaba, bairro da capital do estado do Ceará, Fortaleza) localizada na capitania subalterna do Ceará Grande, no ano de 1787.

Desde que tomou posse como ouvidor naquela capitania, em 1786, o ouvidor Manoel de Magalhães Pinto e Avelar Barbelo vinha se queixando, em carta de 3 de março de 1786, da “desordem”, do “estado de perturbação e revolta” em que tinha encontrado a capitania, em razão da “tirania” com que moradores brancos e autoridades (diretores, ouvidores, governadores) vinham tratando os indígenas que habitavam as vilas de índios, “mais escravos no tratamento que se lhes dá do que escravos africanos”.

As denúncias feitas pelos indígenas ao ouvidor se reportavam principalmente à violência física que sofriam, sendo submetidos frequentemente “ao tronco” (instrumento de tortura) e trabalhos não pagos, realizados para os moradores e diretores das vilas. Trabalhos esses que podiam ser domésticos, na agricultura ou na construção de casas.

Diante das denúncias, o ouvidor revela-se acuado, ao tomar conhecimento da cumplicidade que havia entre os diretores de vilas e o governador da capitania, cogitando que “aqui a discórdia [entre ele e as autoridades do lugar] causa maiores vexames e ruínas que a mesma desordem”. – O que justificaria sua decisão de não aplicar as punições previstas no Diretório às autoridades envolvidas.

E o problema enfrentado pelo ouvidor aumentou, quando no ano seguinte, 1787, os indígenas da Vila de Arronches fizeram uma denúncia sobre o tráfico e comércio feito com os aluguéis e vendas de meninos e meninas indígenas, com a conivência do governador da capitania, capitão-mor João Batista de Azevedo Coutinho de Montaury.

A denúncia consistia no fato de que 41 crianças, entre meninos e meninas, haviam sido roubadas da escola, e vendidas, para trabalhar em plantações e outros serviços, sob ordem do diretor da vila, conivente com os interesses do capitão-mor. E igualmente grave, o responsável pela denúncia foi vítima de espancamento e tortura pelo mesmo diretor, e ainda mais, o juiz ordinário da vila foi mantido em cárcere.

Naquela ocasião, em carta de 4 de junho de 1787, dirigida à soberana Maria I, Rainha de Portugal e Algarves, o ouvidor apelou para a intercedência da soberana, contando sobre suas “providências pacíficas” e que “tudo foi em pior daí em diante”, concluindo que “a justiça, desde o tempo do desembargador meu antecessor, tem estado em interdito até agora nesta capitania”.

A providência que o ouvidor havia tomado, diante do caso, foi escrever uma carta repreendendo o diretor da vila e “recomendando-lhe que em nada procedesse contra aqueles miseráveis”, na expectativa de que tudo se resolvesse ali. Porém, continua o relato do ouvidor: “pensei que por estes meios brandos poria tudo em paz, visto não poder resolver a dar outras providências mais eficazes, com receio e medo do capitão-mor protetor. Enganei-me porém inteiramente […]”.

Curiosamente, a situação narrada acima oferece inúmeros elementos para se pensar sobre a relação entre os poderes da República no Brasil contemporâneo.


Profa. Isabelle Braz Peixoto da Silva 491q29

Professora da Universidade Federal do Ceará e autora do livro: Vila de Índios no Ceará Grande: Dinâmicas locais sob o Diretório Pombalino, publicado pela Pontes Editores em 2005.

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SAIBA MAIS:

COSTA, João Paulo Peixoto. Não deixam de suspirar pela sua liberdade: motins de índios no Ceará e a formação do Estado no Brasil. Almanack, Guarulhos, abril 2019, n. 21, p. 484-528.

MONTEIRO, John Manuel. O escravo índio, esse desconhecido. In: GRUPIONI, Luís Donisete Benzi (Org.) Índios do Brasil. Brasília: Ministério de Educação e do Desporto. 1994.

PACHECO DE OLIVEIRA, João (Org). A presença indígena no Nordeste: processos de territorialização, modos de reconhecimento e regimes de memória. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011.

PINHEIRO, Francisco José. Documentos para a história colonial, especialmente a indígena no Ceará (1690 – 1825). Fortaleza: Fundação Ana Lima, 2011.

SILVA, Isabelle Braz P. da. Vilas de índios no Ceará Grande: dinâmicas locais sob o Diretório Pombalino. Campinas: Pontes editores, 2005.